Metrificação: Aprenda o que é isso

No post anterior tivemos algumas breves considerações a respeito do que é a poesia e como podemos fazer para entendê-la. Hoje veremos um pouco a respeito de metrificação. É simples e todos terminarão a leitura dominando o assunto…

A correlação forte de ritmo e poesia teve uma consequência: criaram-se formas (ô) poéticas, isto é, certos moldes fixos de composição do texto, em que se definem, por exemplo:

  • o número de sílabas dos versos;
  • um padrão de distribuição da acentuação das sílabas;
  • o número de estrofes;
  • o esquema de rima.

Uma das formas (ô) mais famosas é o soneto - uma composição de 14 versos, muitas vezes distribuídos em quatro estrofes (as duas primeiras com quatro versos e as duas últimas com três versos), seguindo:

  • um certo padrão rítmico - que é obtido por um número igual de sílabas em todos os versos e uma determinada sequência de sílabas fortes e fracas;
  • alguns esquemas fixos de rima. Versos rimados são aqueles cujas últimas   palavras apresentam semelhança ou igualdade sonora. Um esquema bastante comum nas estrofes de quatro versos de um soneto pode ser representado pelas letras abba, isto é, há rima entre o primeiro e o quarto versos e entre o segundo e o terceiro.

Veja o exemplo abaixo - um dos muitos sonetos líricos escritos por Camões no século XVI:

Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n'alma.

(http://www.uol.com.br/cultvox/livros_gratis/luissonetos.pdf)

Temos aí os quatorze versos do soneto, distribuídos em duas quadras (estrofes com quatro versos cada uma) e dois tercetos (estrofes com três versos cada uma). A rima segue o esquema abba abba cde cde. Os versos têm todos dez sílabas (não esqueça: na versificação contamos as sílabas só até a última forte). E o ritmo é marcado pelo jogo de sílabas fortes e fracas, dando-se, neste caso, um especial destaque à sexta sílaba (o chamado decassílabo heróico).

O soneto tem desafiado os poetas desde que surgiu, por volta do século XIII. Como fazer 14 versos conterem uma totalidade de sentidos? Como abrir e fechar um tema em apenas 14 versos? O desafio é tal que muitas vezes se chamou o soneto de "a gaiola dourada dos 14 versos".

Os poetas, contudo, não seguem sempre essas formas (ô) fixas. Ao lado delas, há o chamado verso livre - modo de compor poesia que se tornou bastante comum desde os fins do século XIX.

Os poemas em versos livres não costumam ter rimas, nem qualquer outro padrão fixo (seja no número de versos ou estrofes, seja na quantidade de sílabas de cada verso, seja ainda no esquema rítmico). Contudo, não se perde o cuidado com o ritmo, que é, como discutimos acima, elemento essencial do texto poético. O desafio composicional do poeta ao escrever em verso livre é gerar uma melodia poética fluente em seu texto, aproveitando várias possibilidades estruturais como, por exemplo, a repetição de palavras ou construções sintáticas e o contraste entre versos longos e breves.

Para complementar esta discussão, leia abaixo o que diz o gramático Rocha Lima sobre o verso livre. O último capítulo de sua gramática (Gramática normativa da língua portuguesa) é dedicado a noções de versificação e é uma boa fonte de consulta para um estudo mais pormenorizado de aspectos das formas poéticas tradicionais:

Verso livre

Assim se chama o verso que não tem medida padronizada. Nele, não há o ritmo "matemático" que estamos habituados a sentir, proveniente da divisão regular das sílabas em grupos métricos com pausas determinadas. Há, no entanto, uma musicalidade particular- baseada no jogo das entoações e das pausas -, a qual reproduz o movimento interior da alma do poeta, regulando-se pela amplidão da ideia ou do sentimento -, ritmo subjetivo, único e intransferível.
Eis uma observação interessante do crítico Sérgio Milliet a respeito da poética dos modernistas brasileiros de 1922:
"Em suma, para eles, o verso só tinha de livre o nome; na realidade criavam novas regras, mais difíceis ainda do que as anteriores, porquanto exigiam do artista uma penetração profunda na própria essência da poesia. Não se tratava de abolir ritmos, música, imagens, mas de encontrar o ritmo certo, a música adequada e a imagem incisiva. A luta era contra a retórica e contra as fáceis e falsas soluções da métrica tradicional, que já não correspondiam nem à língua nem á sensibilidade de nossa época. E o resultado da luta não foi a licença, como pensavam os reacionários, nem a anarquia, como parecem acreditar alguns jovens de hoje, porém a possibilidade para cada um de criar suas próprias leis, as que melhor se ajustassem a seu temperamento e sua mensagem."

LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. 504-505.

Leia, agora, um exemplo de poesia em verso livre. Não há fixidez na forma: o poeta não usa rima e os versos têm tamanho diferente (não havendo, portanto, um único padrão rítmico). No entanto, o poema tem sua melodia, construída a partir de recursos diversos tais como a repetição de uma estrutura sintática - o chamado paralelismo sintético (os três primeiros versos têm a estrutura da comparação) e o contraste entre versos longos (na primeira parte) e versos curtíssimos (na segunda parte).

O poema

Um poema como um gole d'água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

QUINTANA, Mário. Nova antologia poética. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1987, p. 59.

Postar um comentário

0 Comentários