No fim do ano, nos lembremos das flores-de-maio

Este foi um ano atípico. Mesmo forçando a memória, não me lembro de um outro ano que tenha deixado marcas tão profundas como esse. Mas chegar à penúltima semana do ano da forma como cheguei é sinal que, de alguma forma que ainda não consegui entender, Deus está me protegendo. Por mais que eu esteja acostumado a ver as coisas acontecerem de forma diferente daquela como planejei, é complicado pra qualquer ser humano, cantar os versos que colocarei abaixo sem que o coração fique apertado. Já pensei demais nessas palavras do Paulinho Moska:

“Vamos começar colocando um ponto final. Pelo menos já é um sinal de que tudo na vida tem fim.”

Mas a música de onde tirei os versos tem como título algo que pode ainda trazer um pouco de esperança:

“TUDO NOVO DE NOVO”

E é com esse sentimento que fecho o ano aqui no blog com uma mensagem singela nas palavras de Rubem Braga. Se você não o conhece, não procure na Wikipédia ou naquele seu livro empoeirado que está esquecido na sua estante. Leia este post da Luma e fique com a linda imagem construída por ela acerca do cronista que cito aqui.

O ano se vai e que fique a mensagem de que não devemos deixar para amanhã a contemplação de nossas flores-de-maio. Bom Natal e ótimo Ano Novo para vocês, meus leitores, que me acompanharam neste ano e que tiveram MUITA paciência com os hiatos aqui do blog.

FLOR DE MAIO*

Entre tantas notícias do jornal - o crime do Sacopã, o disco voador em Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime que caiu, o homem que matou outro com machado e com foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés - há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os jornais publicaram.
Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta d’água, nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e nos informa gravemente que a partir do dia 27 vale a pena visitar o Jardim, porque a planta chamada “flor de maio” está, efetivamente, em flor.
Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico, contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e escrever, telefonemas a dar, providências a tomar. Agora, já desce a noite, e as plantas em flor devem ser vistas pela manhã ou à tarde,quando há sol - ou mesmo quando a chuva as despenca e elas soluçam no vento, e choram gotas e flores no chão.
Suspiro e digo comigo mesmo - que amanhã acordarei cedo e irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi - um impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam. Qualquer uma destas tardes é possível que me dê vontade real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será tarde, não haverá mais “flor de maio”, e então pensarei que é preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono posso estar em outra cidade em que não haja outono em maio,e sem outono em maio não sei se em alguma cidade haverá essa flor de maio.
No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas sejam lidas por alguém - uma pessoa melhor do que eu, alguma criatura correta e simples que tire desta crônica a sua única substância, a informação precisa e preciosa: do dia 27 em diante as “flores de maio” do Jardim Botânico estão gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a “flor de maio”- talvez com a namorada, talvez só.
Ir só, no fim da tarde, ver a “flor de maio”; aproveitar a única notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais bela e emocionante de um dia inteiro da cidade imensa. Se entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e que vale a pena viver entre tantos Sacopãs de paixões desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes, que a humanidade possivelmente ainda poderá ser salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica.

* Mantive a grafia original da palavra na crônica, mas o Houaiss grafa a expressão com hífen.

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