Análise do poema “A canção do Exílio”

Comecemos a analisar o conceito de texto apresentado no post anterior. Faremos isso analisando o poema “A canção do Exílio” de Murilo Mendes.

Todo texto pos­sui uma coerência de sentido. Isso quer dizer que o texto não é um amontoado de frases, ou seja, num texto, as frases não estão simplesmente colo­cadas umas depois das outras, mas estão costura­das entre si. Essa é a razão de, num texto, o senti­do de uma frase depender das outras; de o signifi­cado ser solidário. Vamos ao poema "Canção do Exílio":

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas de minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai que me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
(Poesias (1925-1953). Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1959, p. 5).

Tomando apenas os dois primeiros versos, pode-se pensar que esse poema seja uma apologia do caráter universalista e cosmopolita da brasilidade. Pode-se ainda acrescentar em apoio a essa tese o fato de que esses versos são calcados nos dois pri­meiros do poema homônimo de Gonçalves Dias

(Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá.),

Que é uma glorificação da terra pátria.
Se isolarmos os dois primeiros versos do res­tante do poema, a hipótese não é absurda: "madeiras" e "gaturamos" representam a natureza vegetal e animal, respectivamente; "Califórnia" e "Veneza" são a imagem do espaço estrangeiro e "minha ter­ra", do solo pátrio. No Brasil, até a natureza aco­lhe o que é estrangeiro.
Essa hipótese de leitura não encontra amparo quando esses versos são confrontados com o restante do texto. O poeta vai mostrando que as carac­terísticas da brasilidade não têm valor positivo, não concorrem para a exaltação da pátria. Analisando os diferentes versos, percebe-se que a cultura bra­sileira é postiça, é uma miscelânea de elementos ad­vindos de vários países. Mostra que os "poetas" são "pretos", elementos oprimidos, que vivem em "tor­res de ametista", alienados num mundo idealizado, evitando as mazelas do mundo real (trata-se de uma referência irônica ao Simbolismo e, principalmen­te, a Cruz e Souza); que

"os sargentos do exército são monistas, cubistas",

ou seja, que os que têm a função de garantir a se­gurança do território nacional têm pretensões de incursionar por teorias filosóficas e estéticas; que

"os filósofos são polacos vendendo a prestações",

são prostituídos (polaca é termo designativo de prostituta) pela venalidade barata; que "os oradores" se identificam com "os pernilongos" em sua ora­tória repetitiva; que o romantismo gonçalvino es­tava certo ao afirmar que a natureza brasileira é pródiga, só que essa prodigalidade não é acessível à maioria da população. O poeta termina desejan­do ter contato com coisas genuinamente brasilei­ras. Seu desejo é, ao mesmo tempo, um lamento, pois sabe que ele não se tornará realidade.

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