Aprenda o que é coesão e coerência textuais

É muito comum os alunos se prepararem de modo errado para o vestibular. Parte desse erro é dos professores. Lembro-me de algumas aulas a que assisti num famoso cursinho paulista no qual as aulas de redação se resumiam à discussão dos temas, mas pouco se falava sobre a estrutura  e menos ainda sobre os aspectos gramaticais envolvidos na construção do sentido desses textos. O resultado era um aluno cheio de conteúdo, mas com problemas graves de norma culta e estrutura do texto. Essa é minha motivação para abordar o assunto hoje aqui no blog. Para isso, vamos observar um pouco um texto muito lindo de João Cabral de Melo Neto.

Galo tecendo a manhã - João Cabral de Melo Neto

TECENDO A MANHA

"Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão".

Eu gosto muito de João Cabral e esse belíssimo poema dele exemplifica a verdadeira arte poética: um perfeito casamento entre forma e conteúdo, expressão e leitura de mundo [como diriam alguns de meus professores de Literatura na faculdade]. Ou, como afirmam os críticos: "a matéria e a forma do Verbo" (Alceu Amoroso Lima); "linguagem carregada de significado até o máximo grau possível" (Ezra Pound). A função poética da linguagem: uma especial arrumação das palavras, quer na seleção, quer na combinação delas, quer na organização sintática do enunciado.

Entre outras leituras possíveis, podemos afirmar que João Cabral lança mão da imagem dos galos tecendo a manhã, num trabalho coletivo ("Um galo sozinho não tece uma manhã"), metáfora de uma sociedade livre que só é possível pelo trabalho solidário. Este artigo, porém, aborda os aspectos gramaticais e nosso foco volta-se para alguns aspectos linguísticos; em particular, para dois: a estrutura sintática e a seleção vocabular. Para dar a ideia de trabalho coletivo, o poeta, ao se referir ao grito lançado por um galo, interrompe a frase e corta a ação - "esconde" o verbo -, que é retomada por outro galo: "De um que apanhe esse grito que ele [lançou] / e o lance a outro [galo]; de um outro galo / que apanhe o grito que um galo antes [lançou] / e o lance a outro [galo]". E, assim, o poema vai sendo tecido, como uma teia.

A seleção vocabular - o campo semântico trabalhado pelo poeta - nos remete ao trabalho de construção de um tecido (e de um texto): tecendo, tece, fios, teia, tela, tenda, toldo, tecido (verbo), tecido (substantivo), lançar (lançadeira é o nome de uma peça de tear), cruzar (passar por, percorrer, apresentar pontos de interseção). Até o ponto de criar um termo: entretendendo, que sugere a fusão de "entretecer" com "entender". Enfim, é um texto coeso (porque todo amarrado), com especial trabalho vocabular e sintático.

Claro que este artigo é para quem já tem alguma noção de coerência e coesão e dos aspectos envolvidos no processo, mas se você, por exemplo, tiver dúvidas quanto ao vocabulário usado no texto, visite nosso glossário.

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