Trilhando os caminhos da poesia

Temos falado nos últimos artigos a respeito de leitura, interpretação de textos, linguagem poética e continuaremos pensando um pouco nos textos que emocionam pelas palavras. Você já sabe que a escrita da poesia é um verdadeiro trabalho de carpintaria verbal. Explico. Um poema é, nesse sentido, uma celebração de sons e sentidos. O poeta molda a massa linguística - constituída por formas (sons, palavras e estruturas sintéticas) e conteúdos (em que se incluem as mais diversas figuras) - buscando, com isso, o maior rendimento de sentidos de cada detalhe.

poema_trem_de_ferro

Vimos que o ritmo, por exemplo, que é comum a toda expressão verbal, é transformado, na poesia, em elemento cheio de significados. Aquilo que normalmente passa despercebido torna-se matéria da escrita poética.

Alguns poetas, inclusive, produzem textos em que o trabalho com a sonoridade em si é quase mais central do que o próprio conteúdo. Exemplo sempre citado disso é o poema Trem de ferro, escrito por Manuel Bandeira.

Nele, o ritmo - obtido com versos curtos e com o jogo de sílabas fortes e fracas (chamadas tecnicamente de tónicas e átonas) - sugere o movimento de um trem (daqueles puxados por locomotiva a vapor), desde seu arranque vagaroso (primeira estrofe) até a velocidade plena (última estrofe).

Ao ler o texto, vamos sentindo o movimento do trem e, ao mesmo tempo, vamos acompanhando o trabalho do foguista - que tinha de pôr continuamente carvão na fornalha da locomotiva - e, depois, a paisagem e a conversa dos passageiros. O poema nos leva a viajar no trem não só pelo seu conteúdo, mas principalmente pela sua forma sonora. Vamos ler?

Trem de ferro

Manuel Bandeira

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oo...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade de cantar!

Oo...
Quando me prendero
No canaviá
Cadê pé de cana
Era um oficia

Oo...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra mata minha sede

Oo...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri

Oo...
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

(1936)

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970, p. 145-146.

O poeta também escolhe cuidadosamente as palavras. Novamente, escolher palavras é um processo comum em qualquer atividade linguística. A diferença é que normalmente escolhemos as palavras com objetivos práticos, visando à comunicação direta com nosso interlocutor. Escolhemos, por exemplo, um certo tipo de palavras para deixar o nosso texto mais adequado aos nossos eventuais leitores. Já a escolha do poeta está voltada primordialmente para a construção da mensagem poética em si.

Observe o efeito, no poema de Manuel Bandeira, de trazer para o texto marcas diretas da oralidade, grafando palavras e expressões como elas são ditas em certa fala popular: prendem, canaviá, oficia, mata, mimbora. Essa escolha está conjugada ao tom coloquial da mensagem do texto como um todo.

O mesmo poeta selecionou um vocabulário bem menos coloquial quando tratou da Lua no poema Satélite. Lembremos de que a Lua foi um dos motivos preferidos de uma expressão lírica, sentimental, romântica (a Lua é dos namorados...). Em seu poema, Bandeira rompe radicalmente com esse modo de falar da Lua e a trata como coisa em si (desmetaforizada, desmitifiçada), tão-somente como satélite, o que não impede, contudo, o poeta de mantê-la como objeto de sua emoção (Gosto de ti assim).

Observe a seleção do vocabulário. Há palavras e expressões menos corriqueiras (plúmbeo, baça, cosmograficamente, desmitificada, mais-valia), o que dá ao poema um tom mais solene, próprio para-um texto que recusa o tratamento sentimental da Lua e, com isso, recusa também toda uma tradição literária.

Satélite

Manuel Bandeira

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados,
Mas tão-somente
Satélite.

Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Olympio, 1970, p. 232.

Por fim, o poeta pode aproveitar as diversas linguagens que circulam socialmente para, retirando-as de seu contexto e de suas funções próprias, transformá-las em matéria poética. Observe nos dois poemas a seguir o afeito obtido pelos autores: no primeiro caso, com o prosaico da linguagem das receitas culinárias e, no segundo, com a "frieza" da linguagem científica e técnica.

Receita de pão

Roseana Murray

é coisa muito antiga
o ofício do pão
primeiro misture o fermento
com água morna e açúcar
e deixe crescer ao sol

depois numa vasilha
derrame a farinha e o sal
óleo de girassol manjericão

adicionado o fermento
vá dando o ponto com calma
água morna e farinha

mas o pão tem seus mistérios
na sua leitura há que entrar
um pouco da alma do que é etéreo

então estique a massa
enrole numa trança
e deixe que descanse
que o tempo faça sua dança

asse em forno forte
até que o perfume do pão
se espalhe pela casa e pela vida

MURRAY, Roseana. Receitas de olhar. São Paulo: FTD, 1997.

Lição sobre a água

António Gedeão

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas, que, por isso,
se denominam máquinas a vapor.

E um bom dissolvente.
Embora com exceções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando a pressão é normal.

Foi nesse líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

(1967)

GEDEÃO, António. Poesias completas. 8. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1982, p. 145.

Por hoje é só. No próximo artigo faremos um exercício de leitura. Não percam. E se quiserem compartilhar nas redes sociais, favoritar, seguir-nos no Twitter, serão sempre muito bem-vindos.

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1 Comentários

  1. "Alguns poetas (...) produzem textos em que o trabalho com a sonoridade em si é quase mais central do que o próprio conteúdo."

    Gostei desse trecho, já li poesias/poemas que não dizem nada com nada, mas tem uma excelente sonoridade.

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