QUEM CONTA UM CONTO AUMENTA UM PONTO?

Quando lecionei para as séries iniciais do Ensino Fundamental II, trabalhei com aulas de leitura. Era impressionante como aquelas histórias que pareciam banais aos olhos dos leitores mais experientes, nos ouvidos dos mais novos provocavam, prendiam, faziam sonhar. Lembro-me também que havia alguns aluninhos que gostavam mesmo era de ver as enciclopédias sobre insetos peçonhentos. Era engraçado vê-los apaixonados por escorpiões, aranhas, lacraias [seria uma tendência a fazer Biologia, Sílvia?)

O fato é que dizem que nenhum de nós resiste a uma história. É só alguém começar a contar um caso qualquer e nós já ligamos nossas antenas, curiosos para saber o que aconteceu. E, claro, somos também contadores de histórias. Veja no Twitter, mesmo que em 140 caracteres, conhecemos diversas histórias. Observe quantas vezes ao dia você começa uma conversa, contando algo que aconteceu com você ou que você viu acontecer:

  • "Eu estava no ponto do ônibus hoje de manhã e..."
  • "Fui comprar pão e..."
  • "Você não sabe o que me aconteceu ontem!..."
  • "Quando eu era criança,..."

Temos todos um bom estoque de histórias vividas e ouvidas, mas também daquelas que inventamos (porque, afinal, nossa imaginação é muito fértil) e que poderiam ter acontecido. Isso ocorre na fala, mas a escrita é cheia de ótimos exemplos. Boa parte do que os escritores põem no papel não é nada mais do que histórias que aconteceram com eles; ou que foram contadas a eles; ou que poderiam ter acontecido; ou uma mistura de tudo isso.

O QUE É ADJETIVO

Se contar histórias (reais ou inventadas) é uma atividade que todos sabemos fazer bem na fala, podemos, então, aproveitar esta nossa habilidade como ponto de partida para aprimorar nossa prática de escrita. Falo disso no meu blog de Propostas de Redação. Ali, a partir de um estímulo [notícia, charge, música…], os alunos produzem seus textos. Queria deixar um exemplo de história para vocês. é uma crônica de um autor de que gosto muito: Rubem Braga.

Como ela é um pouco grande, clique no link abaixo e leia. Garanto que vai gostar.

Mar

Rubem Braga

A primeira vez que eu vi o mar eu não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de meninos. Nós tínhamos viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maré, que é menor que o mar, e a marola, que é menor que a maré. Logo a gente fazia ideia de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava ainda mais a imagem. Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espumas, tudo isso muito salgado, azul, com ventos.

Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito: o mar! Era qualquer coisa de largo, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar...

Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer - como aquela cianea (medusado gênero cyanea) de franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou sua mão... Um rapaz de 14 ou 15 anos que nas noites de lua cheia, quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e dava boa noite... Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer, que ainda não sabe dizer.

Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar dos pobres pescadores maratimbas, mar das cantigas do catambá, mar das festas, mar terrível daquela morte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do alto e mar da praia, mar de pedra e mar do mangue... A primeira vez que saí sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulho de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado, quando a água batia na minha cara e a corrente do "arrieiro" me puxava para fora, não gritei nem fiz gestos de socorro; lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e oleoso, lambendo o batelão. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso mar fabricando um homem...

Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam - um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar...

BRAGA, Rubem. O conde e o passarinho. Rio de Janeiro: Editora do Autor.

No próximo post, trarei algumas questões para estudo do texto e também um comentário sobre a crônica. Até lá!

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2 Comentários

  1. É fantástico trabalhar com alunos das séries iniciais. Aproveitá-los a "fertilidade imaginativa" deles. Voam alto; nos colocam, professores, em certa situação de perguntas, que ficamos as vezes sem saída. Mas é muito bom tê-los como alunos; ainda mais oara trabalhar a leitura e a escrita.

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  2. Amei esta atividade, pois irei com certeza utiliza-la nas minhas turmas!

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