Versos de Deus – Carlos Drummond de Andrade

Versos de Deus

I
Ao sentir nos pássaros
tanta liberdade
e aéreo poder,
imagina um pássaro
superior a todos
e tão invisível
que seu vôo deixe
sensação de sonho.
Com leveza e graça
o homem pensa Deus.

II
No mais alto ramo
Deus está pousado
com uma garra apenas
e fita o mundo.
Do mais alto ramo
desfere vôo
e sai por aí
bicando as coisas,
indiferente às coisas
bicadas,
encantadas.

III
Bica-me Deus
de manso nos olhos,
antes referência
que repreensão.
Alisa o bico
no local. E dói.
Ao sumir crocita:
"Hoje te perdôo."
O que Deus perdoa,
só o sabe Deus.

IV
Deus rumina
que fazer, acaso.
Mais um terremoto?
De que proporções?
Uma nova guerra?
De quantas nações?
Que margem ceder
ao capricho do homem?
Vai nascer um artista?
Nascerão idiotas?
Surgirão robôs?

V
Ao findar o tempo
tudo se acomoda
à sua vontade.
Já não há projeto
de outro Deus ou vários.
Laços entrançados,
gemidos, crepúsculo
sempre continuado.
O homem arrependo-me
da criação de Deus,
mas agora é tarde.

in “A Paixão Medida”

Drummond_frases_blog_Literatura
 
Carlos Drummond de Andrade (Itabira - MG, 1902 - Rio de Janeiro, 1987)
Iniciou sua carreira em Belo Horizonte, onde viveu com a família. Seu irmão o incentivou na vocação literária. Mais tarde, vai para o Rio de Janeiro onde alguns de seus poemas começaram a ser divulgados. O ano de 1928 é marco importante em sua vida e em sua obra: nasce a filha Maria Julieta e publica em São Paulo o poema “No meio do Caminho”.  Drummond, além de poeta, é um excelente prosador, de estilo marcado pelo humor e pelo ceticismo, ou seja, estado de espírito de quem duvida de tudo.

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